José Fanha. Histórias de uma infância vivida e imaginada




“Tive uma grande paixão pelo ‘Principezinho’. Depois havia livros para jovenzinhos de oito, nove anos, que funcionavam muito bem, como ‘A Cabana do Pai Tomás’, ‘Os Três Mosqueteiros’ ou ‘A Ilha do Tesouro’. Havia uma lista de coisas obrigatórias e entrávamos muito mais cedo na literatura clássica”.

Diz José Fanha que não consegue distinguir a memória da imaginação, pelo menos no que toca ao livro que agora lança sobre as histórias da sua própria infância. Em “Era Uma Vez Eu” revisita o rapazinho que foi e o rapazinho que vê agora, uma exercício de mistura mental, que a idade ajuda a sistematizar e a completar.

“No início do livro há uma citação que eu aprecio muito, de um grande poeta brasileiro que é o Manoel de Barros, em que ele diz: ‘Só tive infância, só sei escrever sobre a infância, mas é uma memória inventada.’ Isso é engraçado, porque na nossa cabeça as coisas misturam-se. Há coisas que eu não era capaz de entender aos três, dez ou aos 20 anos e ao longo do tempo vim completando essa memória com o que se vai sabendo e com a forma como se vai olhando para a vida”, explica o escritor, que tem dedicado grande parte dela à área infanto-juvenil e à promoção do livro e da leitura.

 Nesse exercício, que tem tanto de engraçado como de terapêutico, as palavras também ajudam a arrumar as lembranças, “às vezes mais divertidas, às vezes mais dolorosas”. No livro há por isso pequenos saltos no tempo, porque estamos no domínio da fantasia, onde tudo é permitido e, tal como na escrita, a liberdade também é uma característica da infância. “Encontraram-me [no livro] o bolo rainha, que quando eu era pequenino não existia [risos].

Outra coisa é a história de um concurso de máscaras, tinha eu cinco anos, penso que foi em 1956, e eu falo de uma máscara de astronauta. E o primeiro astronauta apareceu em 1961. Portanto é muito provável que não houvesse máscaras de astronautas ainda.”

Em “Era Uma Vez Eu” as histórias são verdadeiras, mesmo havendo “verdades inventadas”, como aquelas, e com isso há sempre alguma exposição. Mas serão difíceis essas revelações, mesmo tratando-se de um livro infantil? “Eu sou um bocadinho desavergonhado [risos]. Sempre fui uma pessoa do palco, no sentido largo da palavra. Estou sempre a trazer para o palco da vida as minhas dores, os meus lamentos, não guardo nada. E isto também é um exercício um pouco assim, mas aqui foi muito sério. Estas histórias são histórias em que me empenhei muito, acho que das coisas que escrevi aquela de que mais me orgulho.”

Outra das histórias que um dia talvez venha a escrever é a do pai. “Nunca vivi com o meu pai. Tive uma relação difícil com ele na minha adolescência e hoje em dia vejo-o de outra maneira e a memória que tenho dele já é outra, porque a forma como olho agora é diferente da de há 40 anos. Tenho o sonho de um dia escrever um romance para descobrir quem era o meu pai. Escrevendo conheço-me melhor e percebo melhor o tempo que passou.”

José Fanha considera mesmo que para a pessoa aprender a ser escritor é preciso aprender-se a si própria.

“Houve um livro que se chama ‘As Orelhas Voadoras’, com ilustrações fantásticas da Fátima Afonso, que durante um ano não soube como o podia trabalhar com os meninos. E um dia numa escola de pré-escolar, quando contei a história e de repente disse aos miúdos ‘agora calem-se todos, vamos ouvir o silêncio’, descobrimos que no silêncio da escola havia uma quantidade imensa de ruídos. Dessa forma, eu próprio descobri a minha história e como a podia trabalhar com eles.”




A arte de contar histórias desde cedo acompanha José Fanha, que se habituou a ouvi-las através da avó, “contadora de histórias fantástica, e uma contadora de histórias da história”, que tanto narrava a dos “Três Porquinhos” como a de Napoleão. Foi também através dela que ficou a conhecer quem já não estava.

“A minha avó contava-me apaixonadamente histórias do meu avô, que já tinha morrido. Ele era militar, poeta, fazia teatro amador e cantava ópera. E ela contava-me coisas tão maravilhosas daquele avô que acho que o meu sonho era ser como ele.”

Desses tempos recorda ainda que a avó lia romances policiais em francês, nos anos 50, e em especial de uma colecção de cor sépia, com um emblema feito de uma máscara e pluma castanhas.   “Há seis meses encontrei esses livros na descrição de um romance do Patrick Modiano. Fiquei tão feliz, afinal os livros existiam! Acontece muitas vezes lembrarmo-nos de coisas que temos medo que não tenham sido reais.”
Nos livros, por outro lado, diz que foi tudo o que queria ser, mas não consegue isolar um sonho que tenha sido apenas de infância. “Tenho um mito na minha cabeça que não sei se é de criança, julgo que não, de ser palhaço num circo. Gosto de pensar que torno as pessoas mais felizes.”

Ana Tomás, Jornal i em 03/06/2015

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