Nem tudo na vida são contos de fadas...

Porque nem tudo na vida são contos de fadas, porque a muitas crianças é roubada a sua infância e a sua inocência quando ainda não descobriram nem a magia nem tão pouco o significado das palavras, porque muitas desconhecem o gesto amoroso de uma história ao deitar e de um beijo ao levantar... pedi à minha colega Ana Perdigão que me deixasse publicar aqui o seu texto, prefácio do Manual de Boas Práticas -Um Guia para o Acolhimento Residencial das Crianças e Jovens, de 2005.





Este é um testemunho de quem conhece e trabalha com a realidade mais dura das crianças em Portugal.
Muito obrigada Ana, pelo teu trabalho, pelo texto e pelo consentimento para a sua publicação!


"Mary Ellen era uma menina americana, vítima de abandono e maus-tratos por parte dos pais.
Tinha apenas 9 anos de idade quando, por acaso, foi encontrada amarrada com correntes aos pés da cama,por uma voluntária da Sociedade Americana para a Prevenção da Crueldade com os Animais.
Não havia qualquer norma que acautelasse tal situação, e garantisse a protecção da menor.
Perante a impunibilidade do facto, em Tribunal foi argumentado que a criança merecia pelo menos a mesma protecção que um cão!
Foi, pois, através da reivindicação para uma criança dos direitos de um cão, que se obteve o reconhecimento judicial da existência de maus-tratos infantis.
O João com 12 anos de idade, acompanhava a sua mãe, quando esta se prostituía. Uma noite, ficou esquecido num jardim da nossa cidade. Sozinho, dirigiu-se a uma Esquadra, onde pernoitou.
Na manhã seguinte, a Polícia veio trazê-lo à Comissão de Protecção de Crianças e Jovens, ficando assim sinalizado como criança em perigo.
Foi-lhe explicado a natureza desta entidade, o modo do seu funcionamento, e as medidas que a mesma pode aplicar.
O João foi ouvido contou-nos a sua história de vida, e não se opôs à nossa eventual intervenção, conforme a lei assim o exige.
Localizada a Mãe, também ela prestou o seu consentimento para o processo correr na Comissão, assumindo não ter condições naquele momento, para ter consigo o filho.
Na ausência de outras pessoas da família mais alargada que pudessem assumir o João, não foi possível concretizar o Princípio da Prevalência da Família, e foi deliberada a medida de promoção/protecção a favor do menor que naquele instante melhor servia o seu superior interesse: o Acolhimento em Instituição.
No acordo assinado pela sua Mãe e a Comissão, ficou desde logo estipulado um regime de visitas daquela ao João, e o compromisso em reorganizar a sua vida para voltar a ter a guarda do filho, cumprindo-se desta forma o princípio da responsabilidade parental.
Já integrado no Instituição, o João começou a frequentar a escola, e a auferir de apoio psicológico.
Um dia, encontrei-o na minha rua. Reconheceu-me como “aquela que me foi levar ao Centro”.
O João estava institucionalizado num Centro de Acolhimento próximo da minha casa, e no seu trajecto para a Escola, passava pela minha rua.
Encontrá-lo de manhã, começou a fazer parte das minhas rotinas, assim como das rotinas do meu marido e dos meus filhos, que muitas vezes já me avisavam:
“Vem ali o João!”...
E era de facto comovente, vê-lo de sorriso aberto, correr rua abaixo sempre que me avistava, só para receber um beijo!
Aquele beijo, com que os pais acordam os filhos, mas que nos Centros de Acolhimento, nem sempre existe!
Ao longo dos 6 meses que durou a institucionalização do João, foram muitas as vezes que me cruzei com ele a passar de manhã na minha rua.
Enquanto o processo corria na Comissão de Protecção, e a evolução da mãe do João era positiva, eu partilhava a sua alegria a ouvi-lo contar os fins de semana com a Mãe, e as novidades da Escola, sempre que me encontrava na rua.
Um dia disse-me que já faltava pouco para voltar a viver com a Mãe...
E eu sabia que assim era!
Em nova avaliação do caso do João, a Comissão de Protecção decidiu a sua reintegração familiar, atendendo de novo ao seu superior interesse:
A mãe do João deixou a prostituição;
Arranjou uma casa para o receber;
Tem um contrato de trabalho;
E, sobretudo, demonstrou sempre a sua disponibilidade materna para voltar a assumir o filho.
O João voltou para a Mãe. Esse facto foi comunicado ao Tribunal, e o seu processo foi arquivado na Comissão de Protecção.
No entanto, a minha rua ficou mais vazia... pois já por lá não passa todas as manhãs, quem para mim corria, para apenas, e tão somente, receber um beijo!
A Mary Ellen nasceu em 1865.
O João nasceu em 1992.
Os 127 anos que separam o nascimento de Mary Ellen do nascimento do João, demarcam bem a distância, essencialmente jurídica, entre a ausência total de qualquer direito reconhecido à criança nascida no séc. XIX, e a existência actual de um vasto cenário legal, que não só encarou a criança como um verdadeiro sujeito titular de direitos, mas que também permitiu o seu regresso para junto da mãe.
No entanto – e quem trabalha nesta área sabe bem – ainda hoje, infelizmente para muitas crianças, os direitos pouco lhes valem em vida, afinal tão curta..."
Ana Perdigão
1 de Junho, 2005

Comentários

  1. Ana,

    Felicito-a pelo(s) blog(s) e principalmente por este texto de Ana Perdigão. Eu trabalho como Terapeuta Clinica Infantil e sei bem o que ela quer dizer com "No entanto – e quem trabalha nesta área sabe bem – ainda hoje, infelizmente para muitas crianças, os direitos pouco lhes valem em vida, afinal tão curta..." Infelizmente ainda temos muito que fazer.

    Acabo de descobrir o teu blog esta manha. Continuação de bom trabalho e visitarei mais vezes.

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